DIÁRIO DE UMA QUARENTENA (A chuva)

28 de abril de 2020 - 11:45, por Claudefranklin Monteiro

Entre o final da noite de ontem e o princípio da madrugada, choveu torrencialmente em Lagarto. A intensidade da tromba d’água que caía e a força do vento foram tamanhas, que não resisti a pausar um filme francês que via na Netflix (A Terra e o Sangue – 2020) e corri para testemunhar o espetáculo da natureza.

Entre a emoção e também o medo da cena, fui tomado por dois sentimentos: preocupação e nostalgia. Primeiro, pensei que o que me encantava aos olhos em minha casa de alvenaria, muito bem construída, naquele momento, estava sendo um pesadelo para os sem-teto e para os de teto improvisado.

Então, rezei. Era o que me restava naquele momento e roguei a Deus que os protegesse. Os vulneráveis, além da ausência da dignidade, também a do direito à poesia do momento. Ao passo que rezava, voltava à infância e me recordava do quanto eu amava sair em temporais. Sem relâmpagos e trovões, claro.

Na Praça da Piedade, em frente à casa do deputado estadual Ribeinho, se formava um enorme “ribeirão”, onde a molecada improvisava um balneário. Eu corria e pulava no aguaceiro como se fosse a última das alegrias desse mundo. Fazíamos “galinha d´água”, uma perícia que permitia um objeto patinar na poça. E havia disputa para ver quem provocava a maior quantidade de pepinadas na água.

Na adolescência, ao conhecer as canções da banda inglesa The Beatles, pude traduzir aquele sentimento dos garotos de Liverpool, sobretudo no trecho da música Rain (Hey Jude, 1970) que diz: “Rain, I don’t mind / Shine, the weather’s fine” (Chuva, eu não ligo / Brilhe, o tempo está bom). E quando ela vinha, não me escondia para proteger a cabeça, cantarolava alegremente ao som de Raul Seixas (Medo da Chuva – Gita, 1974)

Encanto-me até hoje com o cheiro da terra molhada, no início da chuva. Mas gostava mesmo era de abrir os braços em cruz e sentir todo o choro do céu envolver o meu corpo, sobretudo o rosto. Aquilo era um bálsamo para mim. Como se a chuva fosse feita pra mim. Eu me sentia o próprio Gene Kelly na clássica cena do filme Cantando na Chuva (1952): “I’m laughing at clouds / So dark up above / The sun’s in my heart” (Estou sorrindo das nuvens / Tão escuras lá em cima / O sol está em meu coração).

Quem dera poder fazer isso novamente, quantas vezes fosse necessário. Sinto necessidade de lavar a minha alma e livrar-me do lodo de minhas imperfeições humanas. Ao ver aquela chuva, não fosse a crise de garganta e o receio com o coronavirus, certamente daria uma volta no em torno de minha casa, de onde avisto as Torres do Santuário, e seguiria em direção à Praça da Piedade.

Ao chegar, me certificaria se o ribeirão ainda estaria por lá. Pois Ribeirinho não mais está. E na idade e peso que tenho, não me arriscaria mais às peripécias pueris, mas sentaria num banco, ao lado do lindo coreto e ficaria absorto apreciando o lugar. Meu lugar preferido da minha cidade! Quem dera fosse a última morada de minha existência, onde minha carne pudesse se misturar com a terra de seus canteiros (na infância, infinitamente mais lindos que o arremedo de hoje).

Olharia para o céu, abriria os braços em cruz, novamente, e agradeceria a Deus por um dia ter me proporcionado ser criança e experimentado a liberdade de estar na chuva, sem medo de contágio, sem distanciamento social, sem nóias e paranóias. Na época sim, talvez tivesse uma gripezinha ou “tosse de cachorro”, aos puxões de orelhas de minha mãe, xaropes e chás.

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