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DIÁRIO DE UMA QUARENTENA (CARANGUEJO COM FREVO E AXÉ)
14 de maio de 2020 - 11:46, por Claudefranklin Monteiro
Na primeira noite, chorei o que pude e o que não pude no quarto dos fundos, onde dividia o espaço com inúmeros objetos de toda sorte. Vez ou outra, ratos interrompiam meu sono das formas mais inusitadas. Aquele cenário, para mim que não tinha completado dezoito anos ainda e que nunca tinha saído de casa, era devastador. Não falo com ingratidão, afinal, fui acolhido para poder cursar o nível superior. Registro apenas o que a memória guarda de um tempo muito difícil, mas que se revelou importante para mim depois. Ali, aprendi que nada na minha vida seria fácil, que deveria me acostumar à luta constante para atingir meus objetivos e orgulhar minha família.
Aracaju foi a primeira cidade que morei, por algum tempo, depois de Lagarto, onde nasci e me criei e onde ainda moro, por opção e vontade. Os problemas que enfrentei na graduação não me permitiram criar empatia pela capital sergipana. Com pouco dinheiro, costumava caminhar por seus principais pontos, notadamente, o centro. Quando Patrícia foi morar em Aracaju (primeiro com familiares e depois em residência universitária), as coisas melhoraram e isso foi importante para direcionar e amadurecer o sentimento que um nutria pelo outro. Ela também fez a Licenciatura em História na UFS, chegando depois de mim cerca de um ano.
Sinceramente, Aracaju só foi bom para mim quando estava com ela. Em geral, a cidade não me aprazia. Contava os dias para chegar o final de semana e voltar para Lagarto. A quarta-feira era um alento, pois fazia a seguinte conta: depois de amanhã, vou dormir na minha cama e rever minha mãe e meus irmãos. E também um gato que eu tinha, chamado Bimbo, que logo se desfizeram dele por que dava muito trabalho na minha ausência. Domingo à noite era um sofrimento e a vinheta do Fantástico não ajudava, pois me advertia que no dia seguinte teria que acordar cedo, ir para a rodoviária e pegar o ônibus da Fátima (lotado e com uma viagem de pelo menos duas horas) para chegar no primeiro horário na UFS, colocando o último fôlego para fora, de mala e cuia.
Realmente, Aracaju e eu não conseguíamos nos afinar. Isso só aconteceu anos depois, quando voltei para fazer o Mestrado em Educação (1999-2003) e trabalhar no Campus da UFS de São Cristóvão (desde 2009). Até hoje fico confuso se trabalho na antiga ou na nova capital de Sergipe. O certo é que hoje vejo mais beleza em tudo, até quando passo pela Pedro Calazans, em frente à Igreja do Rosário, onde morei por pelo menos três anos e meio. Amo dirigir pela Rua da Frente (apesar dos constantes congestionamentos) e até a Tancredo Neves, a Salmeron e a Desembargador Maynard revelam alguma poesia em seu caos. E nas folgas, tomar uma cerveja gelada ou no Bar do Baiano (Aruana) ou no Bar do Alves (Atalaia), regado à amendoim e peixe.
Caseiro por natureza, até fazer o Doutorado, minha vida seguiu na mesma rotina: Lagarto-Aracaju-Lagarto. Viver em Recife por algum tempo, abriu em mim espaço para o cosmopolitismo e passei a apreciar mais viagens. Num curto espaço de tempo, percorri boa parte do país: de São Luís à Maringá, passando pelo Rio de Janeiro e São Paulo. Não tive a oportunidade de ir à Europa, pois nesse ínterim, o avião deixou de ser interessante e virou fobia, sobretudo quando alguns acidentes aéreos passaram a ocorrer com mais frequência, entre eles o que vitimou parte da tripulação do time da Chapecoense, em novembro de 2016.
Eu já conhecia Recife. Havia estado por lá em pelo menos duas a três ocasiões. Gostei muito das experiências. Após algumas tentativas frustradas de fazer o Doutorado em Salvador (uma delas, mal explicadas até hoje), a capital pernambucana surge na minha vida num momento que precisava muito, sobretudo para me firmar, não só do ponto de vista funcional, mas, sobretudo, intelectual. A cidade me recebeu de braços abertos. Entre os anos 2010 e 2013, depois de seis meses iniciais tensos, às voltas com dificuldades financeiras para me manter e manter a família, tudo o mais foi alegria e crescimento, sobretudo a convivência com o Professor Doutor Severino Vicente da Silva.
Em compensação, minha rotina mudou consideravelmente. Sem poder me afastar, pois estava em Estágio Probatório, com uma concessão especial de meus colegas do Departamento de História, tive que conciliar minhas aulas da UFS (sem redução de carga horária), os estudos, a pesquisa, as participações em eventos científicos, a produtividade acadêmica e a vida pessoal, tudo, ao mesmo tempo agora, como se diz no popular. Engordei pelo menos dezesseis quilos e passei a ter picos de ansiedade. Semanalmente, eu andava como uma lançadeira: Lagarto-Aracaju-Recife-Aracaju-Lagarto. Mas, apesar disso, fui muito feliz em Recife.
Além das obrigações e das demandas da Universidade Federal de Pernambuco, apreciei cada momento em Recife. Lembro com nostalgia do Recife Plaza Hotel, Rua da Aurora, 225, Boa Vista, no centro da cidade, de onde, nos tempos de carnaval, eu podia testemunhar os preparativos para a montagem do Galo da Madrugada. Semanalmente (chegava no final da tarde, para ter aula no dia seguinte, manhã e tarde, e depois seguir para o aeroporto de volta), do hotel, a pé, ia para Livraria Cultura, no Paço da Alfândega, no Bairro do Recife (fechada em julho de 2018), onde ficava até o final do expediente. Na ida e na volta, fazia caminhos diferentes, ora pela Ponte Duarte Coelho-Av. Guararapes-Ponte Maurício de Nassau, ora pela Ponte Maurício de Nassau-Praça da Independência-Rua Nova-Ponte Boa Vista.
A fobia de avião, a necessidade de ficar mais em casa, desacelerar a vida e a chegada de Júlia, em dezembro de 2014, arrefeceram bastante a toada dos meus itinerários. Retornei a Recife outras vezes, agora com a família, dirigindo e sabendo me deslocar na cidade com maestria. Não tardou para que outro lugar voltasse a ser a razão de meus deslocamentos de trabalho, necessariamente sempre recheados com diversão e cultura (afinal, ninguém é de ferro).
A capital baiana me descortinou desde a primeira impressão como encantadora. Fui a Salvador pela primeira vez ainda menino, com meus pais, para visitar minha Tia Maria (irmã mais velha de meu pai, falecida recentemente). Tenho poucas lembranças, mal saíamos da Ribeira, onde ela morou por algum tempo. Na adolescência, retornei, dessa fez sozinho, para conhecer a casa e o trabalho de meu irmão. Ele morava numa Vila Militar da Marinha. Claudemir e Socorro (minha cunhada) fizeram questão de me levar aos principais lugares e nenhum deles, à época, foi tão fascinante quanto o Pelourinho. Ali, tive uma experiência mágica, pois o cheiro e os sons da cidade me diziam muito.
Salvador tornou a ser importante para mim, pois foi lá, em setembro de 2005, que passei a primeira festa da Padroeira de Nossa Senhora da Piedade, sem a presença de meu irmão mais velho. Para não viver essa experiência de luto e ausência muito sentida em Lagarto, eu e Patrícia partimos para a capital baiana e ficamos hospedados no Hotel Bahia do Sol, apartamento 906, Corredor da Vitória. Esse lugar, além do Catussaba Resort Hotel (Itapoã), passou a ter sobre mim e Patrícia significados de muita pertença.
Ao longo dos anos, a identificação com Salvador se aprofundou. Hoje, sinto-me parte de sua cultura e todas vezes que vou por lá, só não lamento voltar porque sei que estarei de volta para Lagarto. Mas, digo sem nenhum constrangimento, que moraria lá com muita satisfação. Se Recife foi acolhedora, os soteropolitanos me adotaram como filho. A cidade me proporcionou grandes oportunidades intelectuais e culturais, além de me presentear com amigos fraternos muito queridos: Prof. Dr. Cândido da Costa e Silva (USCAL), Prof. Dr. Anselmo Machado (Esplanada), Prof. Dr. Milton Araújo Moura (UFBA), Dr. Geraldo Leite (de origens sergipanas) e Prof. Dr. Edivaldo Boaventura (de saudosa memória).
Em grande medida, posso me considerar cidadão soteropolitano. Por intermédio dos professores Anselmo Machado e Edivaldo Boaventura fui acolhido como sócio no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, no dia 15 de maio de 2018. Para um historiador, vale, sem sombra de dúvidas, por um título de cidadania e disso tenho grande apreço e orgulho.
Ainda em Salvador, tive a oportunidade de me aproximar de meus ídolos de infância, no campo musical. Para além dos Beatles, o Trio Elétrico Armandinho, Dodô e Osmar sempre estiveram presentes em minha trajetória de vida, sobremodo no carnaval, pelas razões todas já expostas em meu livro A Vida é um Trio Elétrico (2019). A partir de novembro de 2016, tornei-me amigo de Aroldo Macêdo, que ao lado de Armandinho, André e Betinho formam o grupo. Até a presente data, desenvolvo um trabalho de pesquisa histórica que visa fazer memória do carnaval elétrico, a partir do legado da dupla Dodô e Osmar, 70 anos depois de invenção do Trio Elétrico.