DIÁRIO DE UMA QUARENTENA (Viver para sempre)

12 de abril de 2020 - 21:15, por Claudefranklin Monteiro

Meu saudoso sogro, Ranulfo José da Silva, era uma pessoa muito boa, de coração muito bom, mas muito intempestivo. Na maioria das vezes, tomado pela ira, agia sem pensar e não media as consequências. Também tinha uns repentes muito inusitados. Numa dessas ocasiões, quando limpava um terreno vizinho a sua casa, ao vê que o pneu do trator esmagou uma planta, ele irrompeu com uma frase: “Se Deus existe, essa planta estará viva novamente amanhã”. Naquela noite, ele quase não dormiu em razão da bobagem que falou. No dia seguinte, correu para o lugar e lá estava a planta: linda e viva, novamente.

Meu sogro foi a minha primeira pessoa cujo falecimento eu testemunhei. Vi a vida partir dele, em seu olhar fixo em mim e uma lágrima correndo no olho direito. Naquele momento, bem que ele poderia ser aquela planta. Anos antes, outras duas perdas me foram muito sentidas. Ao vê meu irmão, Cláudio Monteiro, mas lindo como era em vida, desejei que Jesus repetisse o que fez com Lázaro. E aquele passarinho que voou pela janela do hospital, quando minha mãe partiu, desejei que fosse o Espírito Santo a me dizer que ela viveria novamente.

Em 1986, a banda britânica Queen lançou um grande sucesso que vai ao encontro do nosso tema de hoje: Quem quer viver para sempre. É a sexta faixa do álbum A Kind of Magic, escrita pelo guitarrista Brian May para ser a trilha sonora do filme Highlander. A doce ilusão de viver para sempre está entre os principais motes inspiradores das artes de um modo geral.

No filme Indiana Jones, a Última Cruzada (1989), a narrativa gira em torno do achamento do Santo Graal, que se acredita ser o cálice perdido de Jesus Cristo, usado na Santa Ceia. Aquele que o possuísse e nele bebesse, teria a vida eterna. Em mãos erradas, como a dos nazistas, isto poderia ter consequências nefastas.

Nesse sentido, a morte cumpre duas funções: nivela todo mundo por baixo e dá-nos a oportunidade de nos reinventarmos, baixando nossa bola. Se alguns de nós se consideram acima do bem e do mal, mortais, imaginemos o que seria se pudessem viver para sempre?

Ainda assim, quem não alimenta, no fundo do coração, o desejo de viver para sempre? Minha mãe disse outro dia que só faria sentido viver para sempre se fosse para viver com saúde. Para ela, não haveria graça nenhuma viver para sempre, numa cadeira de rodas, por exemplo. A ideia de vida eterna passa, inexoravelmente, pela ideia de morte. Para viver para sempre é necessário ter morrido algum dia e de alguma forma. Assim como a semente que morre para germinar.

Nós, membros de academias literárias, comumente somos chamados de imortais. Quem dera fosse verdade. Quem dera poder conviver com o poeta Estácio Bahia, falecido essa semana, para sempre. Poder continuar a nutrir-me de sua presença terna e de seu rosto sereno e feliz. De igual modo, das presenças físicas do professor Joaquim Prata e do jornalista João Oliva. Só para citar as perdas mais recentes. Não. Não somos imortais. Talvez as nossas obras o sejam. Mas isso, também dependerá de quem viver e da decisão e predisposição de lembrar. Pois quem não é lembrado, de acordo com os antigos, morre-se outra vez e em definitivo.

A canção Permanece Conosco, do Gen Rosso, é um alento pra mim, que como tantos outros cultivam a ideia do viver para sempre. A sombra da morte cai sobre as nossas realidades como um fim de tarde. A escuridão do luto nos toma de assalto como a noite escura. Mas o sacrifício de Jesus Cristo venceu a desesperança e nos encheu de certeza, da certeza que mesmo morto, nós viveremos outra vez e para sempre: “Se tu vais agora, anoitecerá / Se tu vais embora, Senhor o que será? / Se Tu vais agora, anoitecerá / Mas se permaneces, a noite não virá”.

Hoje, em que a Igreja celebra a Ressurreição de Jesus Cristo, a Páscoa, sinto-me como um terreno baldio, repleto de gravetos e pedregulhos. Um terreno ávido de vida e de vida eterna. Para tanto, preciso me livrar dos grilhões que me prendem e me permitir ser arado, cultivado e como a planta de meu sogro, voltar a viver de novo, embora pisoteado pelo peso de meus inúmeros pecados.

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